Posso
resumir o sentido da minha profissão com uma palavra: relação. É a partir da
relação que estabeleço com as pessoas que cruzam seus caminhos com o meu, que
posso ajudá-las. Munida do desejo de compreender, aceitar o outro e me colocar
no lugar dele com toda a empatia que consigo mobilizar, posso fazê-lo
enxergar-se refletido em mim. Entendo que o meu papel na relação que
construímos é a síntese entre o que diz sua boca e fala o seu corpo, é a
síntese entre o que se pensa e o que se sente, entre o que se diz e o que se
faz, entre o que se vê e o que se vivencia, e assim por diante.
Nos
últimos meses tenho percebido que, com bastante frequência, a minha empatia
falha. O meu trabalho de síntese por vezes não acontece, ou por vezes acontece
com menor precisão. Isso não apenas no meu consultório, mas principalmente em
outros contextos. Na tentativa de compreender este fenômeno, me pus a observar
as pessoas ao meu redor e identifiquei evidências de um fato que não é novo,
mas com o qual eu ainda não havia me deparado tão de frente.
Observei
nesses últimos meses que o número de amigos que se encontram em situações de
tensão, de estresse, de abalo emocional, de conflitos, etc., está maior do que
sempre esteve. Talvez seja uma grande coincidência que muitos estejam vivendo
momentos tão difíceis simultaneamente, mas não é isso que vem ao caso. O que me
chamou à atenção é que muitos deles recorrem ao uso de medicação psiquiátrica
como tentativa de aliviar as dores que estão experimentando. Observo que
existem por aí homens e mulheres com o ímpeto de serem mais do que conseguem e,
por não saberem lidar com a frustração de não serem o que pretendiam, recorrem
ao uso de medicamentos psiquiátricos que vão abafar um pouco da sua humanidade
e fazer deles um pouco máquinas.
Frequentemente
as pessoas querem, por exemplo, se desdobrar em dois empregos ao mesmo tempo
que querem estudar, entrar em forma, preparar o casamento, preparar a
formatura, lidar com os problemas da família, os conflitos do relacionamento e
por aí vai... E o mais impressionante é que não se contentam em ter um
desempenho mediano em nenhuma dessas missões. Precisam ser intocavelmente
perfeitas. Por isso mesmo, ao primeiro sinal de que o fardo está difícil de ser
suportado, ao primeiro sintoma de estresse, de tristeza, de abatimento, de
estafa, a solução é sempre buscada num consultório psiquiátrico. E o médico
nunca falha! Nunca soube alguém que tivesse saído do consultório de um
psiquiatra dizendo que ele não receitou nenhuma medicação por não identificar a
necessidade. Aliás, acho que se assim ocorresse, os pacientes sairiam de lá
decepcionados, frustrados, enraivecidos.
Muito
recentemente vivi alguns momentos difíceis. Nada que muitas das pessoas que eu
conheço já não tenham vivenciado, mas na minha experiência foi algo que mexeu
profundamente com a minha estrutura. Mudar nunca é fácil. Em alguns momentos
quis muito que houvesse uma maneira saudável de me entorpecer para que as dores
da alma sumissem. Foi aí então que ouvi de diferentes pessoas: “Procure um
psiquiatra. Estou tomando um ansiolítico que está me fazendo muito bem. Desde
que comecei a tomá-lo passei a dar menos importância a determinadas coisas da
minha vida”. Ou então: “Eu também era bastante resistente ao uso dos
psicofármacos, mas minha vida mudou depois deles. Não me aborreço mais com
pequenas coisas”. Por um instante eu pensei em aderir à nova moda. Afinal, eu
queria tanto parar de sentir algumas coisas. E foi justamente aí que eu me dei
conta do que eu estava desejando: parar de sentir.
Não é
novidade para ninguém que a vida é feita de escolhas. Fazer escolhas não é
apenas eleger, das infinitas possibilidades, aquela que melhor atende à sua
necessidade ou desejo. A todo momento estamos escolhendo: escolhemos se tomamos
café ou suco, se viramos à esquerda ou à direita, se trabalhamos ou se
descansamos, se estudamos psicologia ou filosofia, se casamos ou permanecemos
solteiros... A cada escolha que fazemos também escolhemos do que iremos abrir
mão. Em outras palavras, escolher também é deixar de ganhar. E a verdade é que
nunca temos a garantia que estamos fazendo a escolha certa. Isso causa angústia
e, justamente por isso, as pessoas não querem mais escolher. Querem tudo!
O
problema nem é o desejar ter tudo, fazer tudo, ser tudo. O problema é escolher
assumir tudo ao mesmo e não estar disposto a lidar com as consequências dessas
escolhas. As pessoas querem trabalhar em dois empregos e não sentirem cansaço.
Querem se relacionar sem brigar ou discutir, sem sentir raiva ou frustração.
Querem fazer um casamento sem se estressar com os detalhes. Querem se formar
sem sentir a angústia de ter de encarar o mercado de trabalho. A suposta boa
notícia é que a tecnologia farmacêutica descobriu uma forma de nos fazer parar
de sentir.
Volto
agora ao meu argumento inicial. A minha empatia falha quando o outro não sente.
Como posso me colocar no lugar do outro e tentar sentir o que ele sente se nem
ele mesmo sabe se sente? Há uma incoerência, uma falta de conexão entre o que
diz a boca e o que fala o corpo, entre o que se sabe e o que se sente, entre o
que se vê e o que se vivencia. As pessoas passam a entender o que as comove, o
que as indigna, o que as angustia, mas não sentem mais comoção, indignação,
angústia ou qualquer outro sentimento.
A dor
psicológica, o sofrimento da alma é algo tão natural e humano, e que serve para
nos mostrar os nossos próprios limites. Nos dá evidência daquilo que somos, do
que nos corresponde, do que suportamos, do que nos realiza, do que amamos, com
o que nos entusiasmamos. Por que, então iríamos querer tamponar aquilo que nos
faz quem somos? Assim como sentimos ardor ao nos aproximarmos do fogo, sentimos
medo quando lidamos com o que nos angustia. Quem quer aprender a andar, terá
que suportar a dor de alguns joelhos ralados nas quedas. Quem deseja crescer,
amadurecer, aprender a viver, terá de suportar as dores da consciência de si se
alargando. Deixar de sentir é deixar de viver.