sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

MARIDO DE BISCUIT

Como psicóloga, aprendi que o desenvolvimento humano se divide em fases pautadas no desenvolvimento cognitivo, fisiológico, psicológico, etc. Na prática, eu vejo um pouco diferente. Percebo que o desenvolvimento humano também é marcado por eventos. Há um período da vida em que nos encontramos com os amigos para contar sobre os presentes que ganhamos de aniversário, depois para falar sobre festas de 15 anos, mais tarde para contar sobre o primeiro namorado, que terminamos o Ensino Médio, que passamos no vestibular, que terminamos a faculdade, que estamos noivos, que nos casamos, que tivemos filhos, alguns que se separam, outros que se casam novamente, que aposentamos, que perdemos amigos queridos levados pelo tempo, dentre outros eventos. Eu estou vivendo a fase em que encontro com os amigos e eles contam que vão se casar. Uns estão grávidos e outros até já tiveram filhos... E é assim que vou percebendo que o tempo está passando para mim também.
Muitos sabem que sou psicoterapeuta. Todos os dias, já há algum tempo, recebo em meu consultório pessoas das mais diversas origens, em busca do autoconhecimento, do desenvolvimento pessoal, vivendo toda sorte de situações e infortúnios e com todo o potencial para superar obstáculos e atingir seus objetivos. Fato observado é que um número muito maior de mulheres do que de homens procura e adere à psicoterapia. Entretanto, foi conversando com um dos poucos homens que atendo que cheguei à reflexão que trago aqui hoje.
É sabido que a fertilidade da mulher se reduz significativamente após os 30 anos de idade. Fato fisiológico. Coincidentemente ou não, ao aproximarem-se dessa idade, algumas mulheres que ainda não se casaram ou não encontraram um parceiro e que não tem perspectiva de casamento, começam a entrar em verdadeiro desespero e vão ferozmente à caça do marido perfeito. É claro que não é possível generalizar. Estou falando de um padrão que percebo na minha vida pessoal e profissional.
Entretanto, essa busca é muito mais complexa do que a busca por um marido. Em geral, é a realização de um sonho. Já perdi as contas de quantas vezes eu ouvi a frase: “Que mulher não sonha em se casar?”. Da mesma forma, já não sei quantas vezes ouvi: “Que mulher não sonha em ser mãe?”. Bom, eu sei que existem exceções e que não são tão poucas assim. Entretanto, exceções não definem padrões. O “sonho” é, na verdade, de se casar de papel passado, com cerimônia na igreja, depois morar numa casa com quintal, ter um cachorro, um casal de filhos e um marido.
Penso eu que a inspiração desse sonho pode ter vindo de uma daquelas vezes em que elas estavam assistindo ao programa da Ana Maria Braga ou folheando a Marie Claire na recepção do consultório da ginecologista. Fato é que esse sonho foi ensinado à maioria das mulheres. Assim, o mercado do casamento se alimenta com fome voraz bem como o mercado da maternidade, o de design de interiores, o imobiliário, e assim sucessivamente. Mas meu ponto ainda não é esse. O buraco é bem mais embaixo.
O ideal da vida perfeita inclui o parceiro perfeito. Ele precisa ser bonito, bem sucedido, ambicioso, rico, afetuoso, que esteja disposto a dedicar-se plenamente à esposa e aos filhos. O problema dos ideais é que frequentemente eles estão apenas no plano das ideias e pouco se relacionam com a realidade de fato. O que acontece, então, com os relacionamentos permeados por esses ideais? Causam expectativas frustradas, decepções, conflitos, brigas, separações.
Não há mal nenhum em desejar um parceiro que atenda a todos os pré-requisitos listados acima. O problema é alimentar a esperança de que esse marido aparecerá. O problema é permanecer no mundo da fantasia. Infinitas coisas podem acontecer: pode-se desejar tão ardentemente encontrar o marido dos sonhos que se irá enxergar no parceiro encontrado características que ele não possui ou ainda acreditar que ele possa desenvolver as características necessárias para satisfazer as demandas que a mulher criou, o que pode gerar frustrações. A mulher pode encontrar um parceiro que a ame, a acolha, a aceite, a respeite, mas que, por não possuir os atributos ideais, será ignorado. Pode-se encontrar o marido perfeito, mas pode ser que ele esteja buscando por uma mulher diferente daquela que o idealizou. Pode-se passar a vida sem encontrar o marido ideal e viver pelo resto da vida o sentimento de fracasso e frustração por não ter realizado esse sonho construído de acordo com um ideal sugerido socialmente.
Afinal, de que se está em busca? De um marido de biscuit, que enfeite a sua vida como os noivinhos de um bolo de casamento, ou de uma pessoa real? Busca-se alguém que se adeque aos seus sonhos ou alguém com quem se possa construir sonhos?  Busca-se alguém que funcione de acordo com as suas expectativas e com os seus ideais, ou alguém que lhe possa surpreender?
O óbvio precisa ser lembrado para não ser esquecido: pessoas reais não são perfeitas. Homens reais tem receios, medos, manias, hábitos, limitações. Pessoas reais podem não ser bonitas, podem não ser bem sucedidas, podem não ser ricas, podem não ser ambiciosas, podem não ser carinhosas, compreensivas, afetuosas o tempo todo. A pergunta que devemos nos fazer é: eu consigo aceitar essa pessoa do jeito que ela é? Eu posso compreendê-la no seu jeito de ser? Posso amá-la com seus defeitos? Posso tolerar as frustrações e decepções das minhas expectativas sobre ela?
Nada na vida é garantido e seguro. A vida é um constante risco. Nada nos garante que permaneceremos os mesmos (e tomara que não), que o outro permanecerá o mesmo, que nós teremos os mesmos objetivos, que a nossa vida terá sempre o mesmo sentido, que o outro continuará a atender às nossas expectativas e que nós continuaremos a atender às dele. Relacionamentos sempre começam bem, mas podem não terminar tão bem. Ninguém se casa com a intenção de se separar, mas tudo pode acontecer. Ninguém pode prometer que amará o outro pelo resto de sua vida, ou que conseguirá tolerar determinadas coisas por todo o sempre. “Até que a morte nos separe” é uma utopia!
O que podemos prometer é que iremos tentar. Que faremos um exercício constante de tolerância às diferenças, de aceitação, de concordância, de coerência. Mas, enquanto seres humanos, estaríamos mentindo se déssemos a garantia de que conseguiríamos tudo isso. O amor ilude. Por essa razão, o que podemos fazer, é cuidar do agora. Devemos renovar o nosso projeto de uma vida conjunta a cada dia, e um projeto não se consolida no final. No final o que temos é o resultado. O projeto é a visualização da maneira como achamos que uma coisa tem que ser e que podemos fazer pequenas mudanças, quando acharmos necessário, ou podemos recomeçar a qualquer momento.
Como podemos, então, acreditar que a vida nos dá fôrmas e que nós devemos nos adequar a elas? Nós construímos as nossas fôrmas de acordo com a nossa história e com as nossas exigências. Contudo, a melhor fôrma é aquela flexível: aquela à qual podemos nos adequar, mas que também cede ao nosso formato.

Passamos a vida desejando ser aceitos como somos. Almejamos encontrar pessoas que não nos digam como ser, como fazer, como agir, como viver. Queremos encontrar um espaço em que possamos ser nós mesmos, sem ser julgados. Isso torna incoerente o desejo que às vezes temos de buscar alguém a quem poderemos impor como ser, como fazer, como agir, etc., para satisfazer a nossa vaidade, alcançar nossos objetivos, atender às exigências, sociais, sentirmo-nos adaptados. A maior busca de um ser humano é ser reconhecido como sujeito, não como objeto. Por que, então, trataríamos nosso companheiro como um noivinho de biscuit? Queremos um parceiro? Ou queremos um robô? Queremos um dia-a-dia que nos traga realizações cotidianas ao lado de alguém real? Ou queremos exibir o álbum de fotografias do nosso suntuoso casamento num chá da tarde com as amigas? Queremos dias de uma vida real com problemas reais ao lado de uma pessoa real? Ou queremos brincar de faz-de-conta com a vida perfeita e o príncipe encantado? Queremos muitos momentos de pequenas realizações sem glamour, sem frescuras, com pijamas e filmes na TV? Ou queremos apenas um evento com um vestido de noiva reluzente e ostentoso para que depois os outros possam dizer o quanto somos sofisticadas? Queremos uma vida de verdade? Ou queremos uma vida de novela da Globo?
Ainda reside em mim a esperança de que as mulheres dos nossos tempos consigam olhar para si mesmas e reconhecer qual a sua verdadeira busca, qual o real significado de um matrimônio, de uma união, de um relacionamento, da maternidade. Que elas consigam amar pessoas reais e não pessoas ideais. Que elas possam escolher casarem-se ou não, libertas da necessidade de satisfazer a expectativa do outro. Que elas sejam autenticamente felizes e realizadas nas suas exigências e não nas exigências alheias.